sábado, 13 de fevereiro de 2010

Edição Especial: Carnaval, Grito Rock, independência e formação do público: por um mercado independente


Por: Carlos Rogério Duarte - publicado originalmente no dia 12/02/10 e no http://identidademusical.com.br/blog/2010/02/12/crnvlgrckindep/

O carnaval começa hoje, e hoje já dormi irritado com um vizinho da rua de baixo, que ouviu samba a noite toda. Não tem jeito: quem mora no Brasil tem de aceitar que é quase impossível fugir de carnaval e futebol. Gostemos ou não, temos de entender que essas são duas de nossas maiores manifestações culturais. Aliás, já me meti aqui – apesar de essa não ser a minha especialidade – a analisar o samba-enredo “Vai Passar”, de Chico Buarque. Também já usei o carnaval pra pensar um pouco a respeito de canções de 365 e de Visitantes. Tentativa de relacionar a maior festa popular do Brasil – que, em boa medida, já está pasteurizada pelas transmissões de tv – com o melhor da MPB e do rock paulistano.

Mas acordei consolado, porque hoje à noite acontece o Grito Rock São Paulo, no Studio SP, com dois espetáculos antológicos: shows de Macaco Bong e Porcas Borboletas.

Quem acompanha este blog, sabe que já escrevi três textos sobre o Porcas: um sobre o primeiro trabalho deles, um sobre a canção “Menos” e outro sobre um show que fizeram no mesmo Studio SP, em 2009. Sobre o Macaco Bong, escrevi um no mês passado, que estourou de acessos.

Talvez a gente se esqueça de que a nomenclatura “Grito Rock” remete aos “gritos de carnaval” – aqueles blocos que saem antes dos dias oficiais do feriado, excitados pela proximidade da festa. Não sei se o nome “Grito Rock” foi, no nascedouro, inspirado em uma certa resistência à alienação inerente ao carnaval. É desnecessário retomar o debate aqui: o carnaval seria, numa determinada linha de raciocínio, o feriado que serve para a população, de todas as classes sociais, alienar-se da realidade, mergulhar na cerveja, nos lolós e nas músicas fáceis. Por outro lado, o rock seria um gênero mais radicalmente ligado à contestação. Deixando de lado exageros e sectarismos, tudo isso tem muito de verdade. Mais ainda: na história da canção brasileira, cada vez mais os lançamentos de carnaval têm aquela feição repetitiva, que enjoa, feita pra “tirar o pé do chão”, na euforia gratuita, de massas, completamente vazia, meramente festiva... por quê?

As bandas independentes têm papel relevante nesse contexto, por meio do Grito Rock – principalmente se considerarmos que ele é, de certa forma, uma contestação, não ao carnaval em si, mas ao modelo de mercado que ele ajuda a sustentar. Mas aí entramos na questão delicada, aquela que me levou a escrever este texto: falta, muitas vezes, uma definição precisa de o que é ser independente.

E aqui vou insistir em meu estudioso preferido: Luiz Tatit (na foto à direita), cujo grupo Rumo foi um precursor dos independentes de hoje. No artigo “Antecedentes dos independentes”, de outubro de 1984, que hoje pode ser lido no livro Todos Entoam, o compositor e professor da USP revê a história da canção brasileira sob uma perspectiva bastante curiosa: as relações entre função técnica (técnicas de gravação, reprodução, divulgação, etc) e função artística. Para ilustrar: no início do século XX, os cantores tinham de ter vozes potentes para que as gravações tivessem mais qualidade, devido à precariedade dos processos de gravação.

Pois bem: pra resumir bastante – insisto aqui que todo mundo que trabalha com música tem de ler o texto integral do Tatit –, com a evolução das tecnologias, as duas funções tiveram maior ou menor proximidade, de acordo com o gênero musical, com a faixa de público atingida e com a época. Avaliando o movimento independente da década de 80, em São Paulo, chamado tradicionalmente de Vanguarda Paulista, associada ao próprio Rumo e a Itamar Assumpção, Tatit afirma o seguinte:

Como essas empresas [as grandes gravadoras] invadiram o domínio artístico assumindo também suas funções (visando maior controle do produto), esses artistas [independentes] embora em proporção infinitamente menor, passaram a acumular em ampla escala a função técnica, território inviolável das gravadoras.

Trata-se, com as diferenças acentuadas pelos progressos tecnológicos de trinta anos, exatamente do processo que vivemos hoje em escala acentuada. E depois, ainda diz o seguinte:

Daí decorre a noção de artista independente. Ao invés de permanecer à espreita de oportunidades ou de se submeter a julgamentos, quase sempre humilhantes, por parte dos empresários-produtores, o artista percorre toda a trajetória da produção e da divulgação do disco, enfrentando toda sorte de obstáculos, pagando todos os custos, para no final concluir que o preço de seu LP não saiu tão caro (principalmente se comparado a produções de áreas vizinhas como o cinema, por exemplo), a técnica empregada não foi tão complexa e a distribuição e divulgação em escala modesta foram suficientes para o reembolso do capital inicial.

Impressionante que o texto tenha sido escrito há mais de vinte e cinco anos. O artista independente continua sendo aquele que não aguarda as oportunidades e acumula as funções técnica e artística – gozando de total liberdade de criação. Por outro lado, as possibilidades infinitas de gravação que o desenvolvimento tecnológico trouxe nas últimas duas décadas talvez tenham gerado uma oferta excessiva – para usar um termo mercadológico – de produções artísticas, o que resulta em concorrência violenta. O Toque no Brasil e o Grito Rock são exemplos disso: centenas, talvez até milhares de bandas pelo Brasil, disputando um lugar ao sol, dispostas a mostrar o trabalho por pouca ou nenhuma remuneração.

Não pretendo avaliar esse cenário de forma aprofundada, nem prever os rumos que o mercado da música independente tomará. Mas é importante analisar alguns detalhes.

O primeiro, que me parece fundamental, é de ordem estética: a efervescência da cena musical independente dá voz a propostas musicais ousadas. Se quisermos, dá o direito ao grito (rock) de que falava o narrador de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Bandas independentes como Macaco Bong e Porcas Borboletas – só pra citar as duas que gritam rock hoje à noite – criam trabalhos conceituais, artisticamente ousados, que passam longe dos produtos pasteurizados das FMs e das trilhas de novelas. Mais do que isso: a difusão de propostas como essas contribui no processo de formação do público, invertendo a chave dos grandes meios de comunicação. Em palavras bem simples: a aceitação cada vez maior de bandas como Macaco e Porcas desbanca a ideia de que “o público que se divertir, dançar e cair de bêbado, sem pensar” – justificativa dos mais conservadores para a produção do lixo musical que nos agride os ouvidos.

Segundo detalhe: quero acreditar que, com o tempo, o público saiba diferenciar, com base no processo formativo que vem experimentando agora, as bandas independentes de projetos ousados das que, embora independentes, apenas repetem o modelo de “sucesso” (que também está em xeque) das grandes gravadoras. Mas não posso acreditar que a indústria fonográfica não tenha se dado conta das alterações que o mercado de música vem sofrendo. Nem tenho tanta fé na humanidade a ponto de acreditar que, no futuro, só vingarão bandas de propostas ousadas. Nem acho que isso seja saudável: a canção, ao longo de todo o século XX, foi feita para consumo. Em teoria, não acredito que seja um problema a existência dos produtos pasteurizados do mercado – todos queremos dar uma chutada no balde de vez em quando, quando a vida está difícil, e não queremos pensar em nada, só curtir. Mas acredito que seja grave que proposta ousadas esteticamente não tenham o espaço e o investimento que merecem.

Daí ao terceiro detalhe: pouco vale uma proposta estética ousada se aqueles que a criaram não tiverem chances de dar-lhe continuidade. Atualmente, as bandas têm se virado com cachês apertados, incentivos públicos e algum apoio isolado da iniciativa privada. Empregos fixos, que nada têm a ver com música, são uma alternativa para muita gente. Com sorte, surgem empregos que dialogam, em alguma medida, com a música. Mas a verdade é que, apesar de o estarmos construindo, ainda não alcançamos – nem sabemos exatamente o que virá a ser – o mercado (não apenas a cena) independente de música, em que músicos e profissionais da área de música independente tenham uma remuneração digna e possam dedicar-se a seu trabalho: a integração equilibrada entre as funções artística e técnica.

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